Bossa Nova & Latin Jazz
Nascida no Brasil como um grande marco para a música popular, conforme sua circulação pelo mundo, a...
"Eu soube que a música era minha linguagem, mesmo. Que a música ia me levar a conhecer o mundo, ia me levar a outras terras".1 Com mais de 60 anos de carreira, 65 discos, dois Grammy e sete Latin Grammy Awards, Gilberto Gil tornou-se um dos principais ícones da cultura brasileira no mundo. A trajetória deste artista de muitos talentos, violonista, compositor, autor de alguns dos maiores sucessos da MPB e Ministro da Cultura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, abraça a diversidade dos gêneros musicais do espaço atlântico.
Da estética pop ao movimento Tropicália, às colaborações com Jimmy Cliff e com a beninense Angélique Kidjo,2 Gil contribuiu para a apropriação de gêneros musicais americanos e africanos no Brasil, bem como para a projeção da música brasileira no mercado internacional, afirmando-se como um verdadeiro mediador cultural.
Gilberto Passos Gil Moreira nasce em Salvador em 1942, em uma família de classe média—seu pai era médico e sua mãe, professora primária. Passa a infância em Ituaçu, pequena cidade do interior baiano, seguindo, ainda criança, para a capital, onde cursará os estudos secundários e universitários. É nessa época que descobre a música de Luiz Gonzaga, o ícone do Baião e dos ritmos nordestinos. Seguindo o seu exemplo, Gil aprende a tocar sanfona e inicia a sua careira com o grupo Os Desafinados. Assim como muitos outros músicos da sua geração, ele vivencia a Bossa Nova como uma revelação no final dos anos 1950. Impressionado pela técnica e pela sensibilidade musical de João Gilberto, troca a sanfona pelo violão. Em 1963, grava seu primeiro disco a convite do produtor Roberto Santana, que o apresenta à nova geração musical da Bahia: Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gal Costa e Tom Zé, com quem realiza um primeiro espetáculo coletivo no Teatro Vila Velha, em Salvador.
Gil parte logo depois para São Paulo. Lá trabalha por um ano na empresa Unilever, antes de se dedicar exclusivamente à carreira musical. Em 1967, despontam seus primeiros sucessos: Louvação, seu primeiro LP é lançado pela Phonogram e sua canção "Domingo no parque" é premiada no Festival da Música Popular Brasileira. Reivindicando a influência dos Beatles, esse "manifesto pop" mescla o berimbau e as guitarras elétricas.
Já nessa época, Gilberto Gil e Caetano Veloso defendiam uma estética musical aberta ao mundo: um "som universal", tomando emprestadas referências da música pop, de sambas de Carmen Miranda, de ritmos do Nordeste. A vontade de modernizar a música brasileira está na origem do movimento Tropicália, liderado pelos dois baianos, que reúne músicos da Bahia, os jovens roqueiros Mutantes, os poetas e letristas José Carlos Capinan e Torquato Neto, a "musa da Bossa Nova" Nara Leão, bem como Rogério Duprat (um compositor de formação erudita, aluno de Stockhausen).
A Tropicália reivindica a herança do Modernismo brasileiro, sobretudo no que tange ao Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, texto fundador de 1928, cujas frases iniciais lançavam uma provocação: "Tupi or not tupi? That is the question". À semelhança dos índios Tupinambá, que devoraram seus inimigos para se impregnar de sua força vital, os artistas brasileiros deveriam "canibalizar" as tradições indígenas, africanas e europeias para assim criar uma cultura original, que não fosse mera cópia de modelos europeus e nem simples reprodução de um folclore obsoleto. O LP coletivo Tropicália ou Panis et circencis, de 1968, celebra essa "estética da miscigenação", mesclando sonoridades pop, música erudita e hinos revolucionários.
A ousadia dos tropicalistas, contudo, durou pouco. O regime militar instaurado em 1964 ganha contornos ainda mais totalitários com a publicação do Ato Institucional n.º 5, em dezembro de 1968. Gil e Caetano são detidos, em São Paulo, sob a acusação de desrespeito à bandeira brasileira durante um show, cujo cenário reproduzia a obra do artista plástico Hélio Oiticica, Seja marginal, seja herói.
Após dois meses de prisão no Rio de Janeiro e outros quatro de confinamento em Salvador, eles são "convidados", em junho de 1969, a deixar o país. Começam então os anos de exílio na Europa. Depois do desembarque em Portugal, passam um curto período na França e se instalam em Londres, onde residem até 1972.
Em Londres, Gil frequenta a cena musical e aprofunda o aprendizado do violão. "Tudo me ensinava, de repente vinha na minha cabeça assim: os Beatles fizeram isso, Jimi Hendrix também fez isso, [...] eu ia tocar no Markee, então eu dizia: puxa vida, Mick Jagger cantou nesse palco".3
Em 1971, Gil grava um álbum inteiramente em inglês nos estúdios londrinos Chappell.4 Apresenta-se na Europa (no Festival da Ilha de Wight, na França, Suíça, Alemanha, Suécia etc.) e em Nova York. Sua música, todavia, permanece pouco conhecida tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. Em seus shows, seu público era formado basicamente por brasileiros exilados ou latino-americanos.
Londres também é uma porta de entrada para Gil no Atlântico negro. Antes de partir para a Europa, sentia-se "pouco tocado pela consciência negra", já que—concluía—jamais sofrera racismo no Brasil tendo em vista sua condição social de classe média.5 É em Londres que a questão racial o interpela. Isto graças, sobretudo, aos contatos que mantém com ativistas estadunidenses e às informações pujantes sobre os movimentos de independência africana. Essa tomada de consciência conduz Gil a outros universos musicais: é em Londres que descobre o reggae, que ele popularizou após seu retorno ao Brasil. Em 1979, enquanto a ditadura militar dá os primeiros sinais de enfraquecimento, ele grava uma versão de "No Woman, No Cry" em português. A homenagem a Bob Marley cria também uma ocasião para evocar a situação política do país. "Good friends we have / Oh good friends we've lost / Along the way..." se transforma em "Amigos presos / Amigos sumindo / assim: Pra nunca mais": uma alusão direita aos crimes da ditadura militar.
Foi também em Londres que Gil desenvolveu um novo interesse pelos ritmos afro-brasileiros: de regresso a Salvador, em 1972, ele assiste pela primeira vez uma cerimônia de candomblé e se aproxima dos blocos afro do carnaval da Bahia. O culto dos orixás e os ritmos do carnaval inspiram os álbuns desse período, como Cidade do Salvador ou Gil Jorge Ogum Xango (gravado com Jorge Ben Jor).
Em 1977, Gil viaja pela primeira vez à África para participar da segunda edição do Festival Mundial de Artes Negras, organizada em Lagos. Com a finalidade de sustentar sua posição estratégica no Atlântico Sul, o Brasil envia uma importante delegação de artistas e intelectuais, selecionados pelo Ministério das Relações Exteriores, para expressar "as relações históricas e humanas entre África e Brasil". Crítico da ditadura, preso, exilado e não imune à censura no pós-exílio, Gil é oficialmente convidado pelo Ministério do governo Geisel para participar do evento—convite a partir do qual se pode observar o contraste marcante entre a política interna do regime militar e as ações da diplomacia cultural brasileira.
Ao retornar de Lagos, ele grava Refavela (Phonogram, 1977), um álbum engajado, que mescla sonoridades do Atlântico negro: "Ilê Ayê", canto afro do carnaval de Salvador; o reggae "No norte da saudade"; "Balafon", uma homenagem à juju music nigeriana; e "Samba do avião", bossa nova de Tom Jobim revisitada com um ritmo funk. Em suas próprias palavras, Refavela é um LP conceitual: "É essa coisa de arte dos trópicos, comunidades negras contribuintes para a formação de novas etnias e novas culturas no Novo Mundo: Brasil, Caribe, Nigéria, Estados Unidos...".6 A estética da miscigenação perdura, agora, com um propósito universal: "É aquilo que eu digo, 'brasileirinho pelo sotaque, mas de língua internacional'"7.
Os anos 1980 marcam, juntamente com o retorno da democracia no Brasil, o desenvolvimento da carreira internacional do músico. Em 1978, sua apresentação no festival de Montreux dá origem a um LP duplo, gravado ao vivo. No ano seguinte, a Warner lança o seu primeiro álbum nos Estados Unidos, Nightingale. Gil multiplica as turnês na Europa e nos Estados Unidos, e é consagrado no mercado internacional com Gilberto Gil Unplugged (Warner/MTV, 1994). Em 1998, recebe o seu primeiro Grammy Award por Quanta, considerado o melhor disco de world music daquele ano. Respectivamente, em 2001 e 2005, ganha novamente o Grammy pelos discos Gil e Milton e Eletroacústico. Ele também foi um dos músicos mais premiados na categoria "Música Brasileira" desde a criação, em 2000, dos Latin Grammy Awards.
Paralelamente à sua atividade musical, Gil se compromete com a vida política: em 1989 é eleito vereador do município de Salvador pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB); em 1990, integra o Partido Verde (PV). Em 2003, é nomeado Ministro da Cultura pelo presidente Lula. Seu ministério é marcado por vários projetos inovadores, como a criação dos Pontos de Cultura (pequenos centros culturais, espalhados pelo Brasil, destinados a democratizar o acesso às culturais digitais) e o revival do debate sobre a propriedade intelectual gerado pela sua defesa das licenças Creative Commons. A persona de Gil como ministro, como ele mesmo reconhece, é igualmente significativa para a afirmação da presença da cultura brasileira nas cenas internacionais. Gil não se furta de sua notoriedade artística quando se trata de colocá-la a serviço da ação política internacional. Durante seu mandato, realiza vários shows e se apresenta em eventos oficiais. Em setembro de 2003, canta na sede da Organização das Nações Unidas, em Nova York, em tributo às vítimas do atentado do prédio da ONU em Bagdá. Canta 16 músicas em português, espanhol, francês e inglês, dentre elas "Imagine", de John Lennon, antes de chamar o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, ao palco para acompanhá-lo na percussão. A imagem emblemática dos dois homens dividindo a cena exprime a convicção, por ambos partilhada, de que a música é fator de aproximação e reconciliação.
A diplomacia cultural brasileira não se limita, todavia, ao cenário ocidental: promover o Mercosul cultural, afirmar o lugar do Brasil como líder da lusofonia no seio da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, defender suas posições frente à Unesco e fortalecer as cooperações culturais com a África são também prioridades do governo Lula. É sob essa perspectiva de diplomacia Sul-Sul que o Brasil participa, em 2010, da terceira edição do Festival Mundial de Artes Negras, em Dakar. Gil compõe o hino do evento, "La renaissance africaine" ("O renascimento africano"), que ele canta em francês, e grava, com arranjos diversos, em vários álbuns solo, e com Vusi Mahlasela, o ícone da canção comprometida sul-africana.8
Esse elogio da África no início do século XXI, de "seu povo e território que se estendem na diáspora até o fim da terra"—como diz a letra de Gil—ocupa um lugar significativo no trabalho do artista: músico e ativista político que se torna testemunha privilegiada e ator-chave do processo de mundialização cultural contemporâneo. O tropicalismo, o exílio e o renascimento africano são, dessa forma, elementos-chave para se compreender o papel do músico no mundo e a variedade de reapropriações culturais das quais se nutre em suas obras. Fundada sobre a mistura de timbres e de ritmos, a arte de Gilberto Gil atesta a relevância do aspecto político no processo de mundialização musical, bem como a vitalidade das trocas culturais no espaço atlântico, trocas não circunscritas ao circuito comercial Norte-Sul da world music.
Todas as citações são extraídas de entrevistas dadas por Gilberto Gil e retomadas em: Sérgio Cohn and Frederico Coelho, ed., Encontros. Tropicália (Rio de Janeiro: Azougue, 2007); Sérgio Cohn, ed., Encontros. Gilberto Gil (Rio de Janeiro: Azougue, 2008) ; e do site oficial do músico. Este texto é uma versão adaptada e reduzida de: Anaïs Fléchet, "Le monde musical de Gilberto Gil," in Littératures et musiques dans la mondialisation. XXe-XXIe siècles, ed. Anaïs Fléchet and Marie-Françoise Lévy (Paris: Publications de la Sorbonne, 2015), 231-243.
Black Ivory Soul (Sony, 2012).
"O sonho acabou. Gil está sabendo de tudo," O Bondinho, 16 de fevereiro de 1972.
Gilberto Gil (Famous Music (UK), 1971).
"Gil fala a Odete Lara," O Pasquim, 15 de outubro de 1969.
"A paz doméstica de Gilberto Gil," O Globo, 10 de agosto de 1977.
"A paz."
Gilberto Gil and Vusi Mahlasela, The South African Meeting of Viramundo (Dreampixies, 2010).