Os editores Garnier: da França ao espaço transatlântico
As Livrarias-Editoras Garnier e seus negócios estiveram entre as primeiras empresas internacionais...
Ao longo da história, gêneros orais em versos e em prosa, transmitidos intergeracionalmente, tanto em situações cotidianas quanto em rituais, têm sido produzidos e documentados em diversos lugares do mundo. São quadras, canções, loas, contos, romances, narrativas épicas, mitos, lendas, que cumprem diversos papéis: preservar e transmitir a memória do grupo, contribuir para a coesão social e para a definição dos papéis de diferentes atores, ritualizar etapas importantes da vida, divertir, jogar, brincar, trazer beleza e imaginação ao ordinário e banal. Essas diferentes tradições obedecem a certas fórmulas, a certos padrões rítmicos e narrativos, relativamente estáveis, que facilitam a sua memorização. Na recitação e/ou a narração desses poemas/histórias, a performance corporal é central. Gestos, palavras e músicas compõem, de modo indissociável, o instante de sua realização. Poetas, romanceiros, trovadores, repentistas, brincantes, griôs, akpalôs, contadores de histórias, de um lado, e público, audiência, ouvintes, de outro, são responsáveis por um momento que, embora reproduza, em grande parte, o já dito, é único e irrepetível.
Por sua vez, em diversos países, principalmente no momento da disseminação das tipografias nos centros urbanos, observou-se uma proliferação de impressos, como jornais, panfletos e cartazes, que serviam como tribuna política, fonte de informação e também de diversão. Muitos desses impressos traziam, em verso ou em prosa, notícias da atualidade e histórias que já circulavam na tradição oral. Essa proliferação de impressos, ao mesmo tempo em que expressava a existência de um crescente público leitor (ou ouvinte, já que muitas vezes o contato com o escrito era mediado pela oralidade), contribuiu para ampliá-lo.
Nesse contexto, que pode ser localizado entre os séculos XV e XIX, dependendo do país, verifica-se, ao lado da editoração de livros, a criação de um tipo de impresso que busca, com baixos custos e uma rede específica de distribuição, atingir esse incipiente público leitor/ouvinte. Esses impressos que, nas últimas décadas, têm sido denominados pelos historiadores culturais como de «larga circulação»1, eram/são produzidos em papel barato, de baixa qualidade e gramatura, em pequeno formato (normalmente in-quarto ou in-octavo), com grandes tiragens, vendidos a baixo preço e com temas «populares», ou seja, de vasta aceitação.
Na confluência dessas diferentes práticas culturais -- gêneros orais transmitidos de geração em geração, literatura erudita, outros impressos, observação do cotidiano -- nasce, portanto, um tipo específico de literatura escrita e impressa que, embora assuma particularidades em cada país, possui traços comuns, que se encontram, sobretudo, em um modo específico de edição. Essa fórmula editorial é reconhecida, em suas singularidades, pelos diferentes atores do circuito da comunicação2, como seus autores, os editores, os vendedores e os leitores/ouvintes.
No Brasil, esse tipo de literatura foi designada, por seus estudiosos, principalmente a partir dos anos 1960, de literatura de cordel, denominação advinda de Portugal, onde também é encontrada. O nome remete à forma como era vendida, pendurada em barbantes. No Brasil, talvez por esse modo de venda não ter sido o predominante, o seu público, na época de seu apogeu (ano 1920 a 1950), chamava-a de «folhetos», «romances» ou «livrinhos de feira»3, denominações vinculadas ao seu formato, a um de seus subgêneros e ao local de venda, respectivamente. Na Espanha, a denominação literatura de cordel também é encontrada, mas talvez a recorrente seja pliegos sueltos (ou pliegos de cordel), que remete, por sua vez, ao modo de edição. Na França, é denominada de bibliothèque bleue, em virtude da cor das capas em que eram impressas na fórmula difundida pelos editores de Troyes, ou de literatura de colportage, referência ao modo pelo qual era vendida, por meio de ambulantes4. Em Nápoles, de modo semelhante ao que ocorreu na Península Ibérica, é chamada de literatura muricciolaia, de la mura (paredes), pois os folhetos ou libretti muriccioli eram expostos pendurados em barbantes nas paredes e muretas de praças e edifícios5. Na Inglaterra, é denominada de chapbooks, expressão que remete ao modo como era vendida -- pelos chapman6. Esse tipo de literatura também é encontrado em diferentes países das Américas, como México, Chile, Argentina e Peru, onde é denominada, genericamente, de corridos, uma referência direta a formas de poesia oral, encontradas nessas regiões. Em cada um desses países, pode receber uma denominação particular, como no Chile, onde é conhecida como lira popular.
A partir dessa breve introdução, podemos afirmar que o cordel é um tipo de impresso que se situa entre o oral e o escrito (e entre o escrito e o oral); entre o popular e o erudito (e entre o erudito e o popular); entre o urbano e o rural (e o rural e o urbano); entre os diferentes países europeus; entre países europeus e culturas árabes; entre países ibero-americanos, africanos e europeus. Não cabe, portanto, em sua análise, a ideia de «origem» ou mesmo de «influência» ; trata-se, sobretudo, de «circularidade» cultural7.
Embora o cordel faça parte, portanto, de um conjunto mais amplo de impressos de ampla circulação produzidos em diversos países, na impossibilidade de tratar de todos os casos, destacaremos, neste verbete, alguns elementos relativos ao gênero encontrados no Brasil, em Portugal, no Chile e na Espanha. Consideramos que se trata de um exercício inicial de conexão entre territórios que, até o início do século XIX, viveram momentos de estreita relação entre suas histórias : como colonizadores (Portugal e Espanha) e colonizados (Brasil e Chile), como parte de um mesmo Estado (caso da Península Ibérica), como usuários das mesmas línguas oficiais (português para Portugal e Brasil ; espanhol para Espanha e Chile), como resultante de influências sociais, culturais e étnico-raciais de indígenas, ibéricos e africanos. Não buscamos, nesse sentido, estabelecer comparações entre os casos, mas apenas indicar possíveis relações entre eles. Um exercício mais completo e complexo incluiria, certamente, outros países de língua espanhola ou mesmo de língua portuguesa, situados nas Américas, mas também em outras partes, como a África e a Ásia.
No Brasil, os primeiros folhetos localizados datam do final do século XIX. Muitos estudiosos atribuem a Silvino Pirauá de Lima (1848-1913), paraibano, a ideia de rimar as histórias tradicionais. Essa é a opinião de Câmara Cascudo (1953), para quem o poeta foi o primeiro a escrever os romances em versos, isto é, «levando-os da prosa citadina para as sextilhas sertanejas na fórmula usual do ABCBDB.» (p.12). Esse poeta representa, na verdade, uma tradição já existente e consolidada, principalmente nos sertões de estados que hoje compõem a região Nordeste, de forte influência indígena —e também, embora em menor grau, africana e provavelmente também ibérica— da realização de cantorias, pelejas e desafios. Ao lado dele, outros cantadores já eram, naquele momento, conhecidos, como Agostinho Nunes da Costa (1797-1858), Inácio da Catingueira (1845-1881), que era escravo, e Francisco Romano (1840-1891). Apresentavam-se nas fazendas, mas também nas cidades, em festas públicas e particulares, e em feiras.
Nesse mesmo período, também já circulavam na região os cordéis portugueses, que tinha também edições brasileiras. Em 1888, Sílvio Romero8 afirmava que esses livros poderiam ser encontrados no Brasil nas primeiras cidades do Império, nas portas dos teatros, nas estações de trem e em outros pontos. Márcia Abreu (1999) analisou, ao consultar o «Catálogo para Exame dos Livros para Saírem do Reino com Destino ao Brasil», no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, os pedidos de autorização para o envio de material impresso para o Brasil, destinados à Real Mesa Censória, a quem competia conceder ou não a referida licença de acordo com a natureza dos livros. Dos 2600 pedidos analisados pela autora, no período de 1769 a 1886, 250 traziam títulos do cordel português. Pernambuco estava entre os principais estados para onde os livros eram enviados: 45 livros. Para o Rio de Janeiro, a autora encontrou 71 títulos, para a Bahia, 55, para o Maranhão, 40 e para o Pará, 22 títulos.
É atribuída a Leandro Gomes de Barros (1865-1918), nascido em Pombal, também na Paraíba, o início da impressão sistemática das histórias rimadas em folhetos. O primeiro deles provavelmente foi impresso em 1893, momento em que se multiplicavam as tipografias em todo o Brasil. A partir de 1909, já estabelecido no Recife, uma das cidades mais populosas do país no período, que passa a ser o grande polo de produção de folhetos no século XX, Leandro passou a viver exclusivamente da produção e da venda dos folhetos, tornando-se ao mesmo tempo autor, editor e proprietário. Outro poeta que se destacou no processo de produção e edição de folhetos foi Francisco das Chagas Batista que, ainda na primeira década do século XX, estabeleceu uma tipografia especializada em Guarabira, na Paraíba.
O apogeu da literatura de cordel no Brasil só se daria entre as décadas de 1930 e 1950, quando alguns títulos chegaram a ter tiragens de 200.000 exemplares. Nesse período, montaram-se redes de produção e distribuição de folhetos, centenas de títulos foram publicados, um público foi constituído e o editor deixou de ser exclusivamente o poeta. Inicialmente encontrados nas tipografias, nas casas dos autores, em livrarias ou enviados pelos correios, os folhetos passaram a ser vendidos, predominantemente, em feiras, mercados e praças, por poetas ou «(re)vendedores», encontrados em diversos centros urbanos. Nesse processo, destaca-se a figura do poeta e editor João Martins de Athayde, estabelecido em Recife, que introduziu inovações na impressão dos folhetos, consolidando o formato pelo qual seria conhecido nas décadas posteriores. Além da publicação das obras de Leandro, Athayde tornou-se editor também de diversos outros poetas e de seus próprios folhetos. Em 1949, Athayde, já doente, vendeu os direitos de proprietário de obras de vários autores a José Bernardo da Silva, de Juazeiro do Norte, Ceará. Inicialmente circunscrito no espaço urbano, aos poucos, principalmente a partir desse período, os folhetos passaram a circular mais amplamente também na zona rural.
Nos anos de 1960, o cordel passou por uma grande crise, tornando-se novamente centro de interesses a partir dos anos 1970, desta vez, principalmente por parte de turistas, universitários brasileiros e estrangeiros: tornou-se objeto de estudo e de curiosidade. Nesse momento, também passou a ser editado em outros formatos (em tamanho maior, em papel de melhor qualidade e com ilustrações coloridas), principalmente pela Editora Prelúdio (depois Luzeiro), sediada em São Paulo, visando a um público formado, predominantemente, por migrantes. Nas últimas décadas, o folheto brasileiro passou por uma série de transformações, embora algumas de suas características tenham permanecido. Atualmente, os versos, que continuam a obedecer a métrica e rima tradicionais, têm sido publicados também em formato ainda mais diversificados, como em livros (inclusive de literatura infantil) e na internet. Além disso, os temas se ampliaram indefinidamente. Assiste-se à emergência de outros modos de circulação: os folhetos podem ser encontrados em livrarias e centros de artesanato e de turismo e na internet. Continuam a ser lidos de modo coletivo e oralizado, mas também individual e silenciosamente. Multiplicaram-se as instituições —a exemplo das academias de cordel— e os concursos e festivais que o promovem, assim como a sua utilização no espaço escolar. Neste verbete, centramos nossa análise do caso brasileiro no período do apogeu de sua produção.
Mas, que literatura de cordel portuguesa era essa que já circulava no Brasil antes da emergência do gênero propriamente brasileiro? Em Portugal, a edição de livretos baratos parece ter se iniciado já no século XVI e vincula-se, inicialmente à obra de Gil Vicente, cujas peças, embora se destinassem prioritariamente à representação na corte e em locais públicos, circularam amplamente nesse formato9. A partir do século XVIII, com os autores da chamada "escola vicentina» a literatura de cordel se estrutura como área editorial10. Nesse processo, destaca-se a obra de Baltasar Dias, cego da Ilha da Madeira, considerado «nacionalizador dos romances europeus», por ter feito versões portuguesas de muitas historias populares de outros países da Europa, muitas das quais originárias do período medieval, e até então lidas em Portugal apenas em versões espanholas e francesas11. O apogeu do cordel português pode ser situado no século XVIII, quando se observou um reflorescimento dessa literatura, após a União Ibérica (1580-1640), expresso em uma vasta produção, com uma multiplicidade de temas12. Além do teatro, das histórias tradicionais, também se encontram relatos de acontecimentos, vidas de santos e outros temas, tanto em verso quanto em prosa. Esses impressos tinham uma rede própria de distribuição, que incluíam diversos tipos de agentes, como cegos e volanteiros, que vendiam de porta em porta nas cidades e também na zona rural, além de livreiros e livrarias. A publicação desse tipo de impresso se prolongou, no país, até meados do século XX.
A literatura de cordel portuguesa, por sua vez, é inseparável da espanhola, com a qual compartilha a denominação, além de diversas características. Na Espanha, relaciona-se a emergência desse tipo de fórmula editorial, ainda no final do século XV, a peças poéticas breves e à tradição do cancioneiro: obras impressas em papel barato, pouco volumosas, escritas tanto para serem lidas quanto para serem cantadas13. Poderiam ser em verso ou em prosa e incluíam tanto as narrativas tradicionais quanto livros doutrinários, notícias e relatos de acontecimentos14. A maior especificidade do caso espanhol talvez resida em seu circuito de edição e distribuição, dominado pelos cegos que, congregados em irmandades, chegaram a ter o monopólio (em Madri), da impressão e da venda de impressos de menos de quatro folhas, entre meados dos séculos XVIII e XIX15. Recitados, cantados ou lidos, os pliegos eram vendidos, por esses agentes, ao lado de gazetas, almanaques, calendários, catecismos, novenas e canções, em ruas, praças, na sede da irmandade, nas casas dos cego. Inicialmente, concentravam-se nos grades núcleos urbanos; aos poucos, alcançaram também as zonas rurais. Os pliegos eram dispostos em maletas, mas também em puestos, estruturas semi-fixas formadas por dois cavaletes armados verticalmente, entre os quais estendiam-se barbantes onde eram pendurados os impressos — essa estrutura originou a expressão catalã para literatura de cordel: literatura de canya i cordill16. Suas tiragens variavam entre 500 e 9.000 exemplares17. No século XIX, a produção de pliegos, concentrada nas mãos de alguns poucos impressores locais, mesmo com inovações (uso da cor da encadernação, por exemplo) e vendida a preços ainda mais baixos, entra em decadência. Nesse momento, cresce o número de pliegos em prosa, vendidos por ambulantes, também em mercados, feiras e romatias. Extingue-se definitivamente na década de 1940 18.
Assim como ocorre entre os casos brasileiro e português, as coneões entre literatura de cordel encontrada na Espanha e a lira popular chilena não são diretas nem podem ser explicadas por noções como importações, adaptações ou apropriações, que certamente apagariam a especificidade e força dessa produção. No Chile, os impressos começam a circular nos principais centros urbanos na década de 1860, a partir da obra daquele que é considerado o maior poeta popular do país : Bernardino Guajardo (1812 ?-1886), autor de muitos versos sobre a Guerra do Pacífico (1879-1883). Os livros e os pliegos espanhóis já circulavam no país nesse momento, assim como formas poéticas também encontradas na Península Ibérica, como o romance, o contrapunto e a décima. Rodolfo Lenz (1919), etnólogo alemão que morou quatro anos em Santiago, em estudo pioneiro sobre esse tipo de impresso, destaca também o papel dos indígenas, que naquele momento compunham a maioria da população rural, na configuração do gênero. Cuecas e tonadas (que, por sua vez, tinha grande influência árabe), por exemplo, também eram impressas nas hojas. O apogeu desse tipo de literatura que, como no caso brasileiro, era produzida unicamente em versos, ocorreu entre a ultima década do século XIX até aproximadamente 1920. Histórias tradicionais, relatos de acontecimentos e temas religiosos eram recorrentes nesses impressos. Nesse período, os títulos tinham tiragens entre três e dez mil exemplares, segundo um poeta entrevistado por Lenz (1919). O circuito de edição e circulação é semelhante ao encontrado no Brasil : o próprio poeta mandava imprimir os exemplares e os vendia — após cantar, recitar ou ler — nas ruas, nas feiras, nos mercados e nas estações de trem, principalmente em Santiago e em outros núcleos urbanos. Por baixos preços, também os vendedores de jornais e outros periódicos atuavam como agentes de distribuição do impresso. Mas os verseros também percorriam o interior do país e, aos poucos, à semelhança do que ocorreu nos outros espaços estudados, os pliegos passaram a ser lidos e ouvidos também nas zonas rurais. Para Lenz (1919), as ferrovias contribuíram significativamente para a disseminação do gênero em todo o território chileno. Como na Espanha, os últimos exemplares localizados datam os anos de 1940.
Diversos estudiosos têm buscado classificar essa literatura, o que nem sempre é tarefa fácil, pois ora o critério reside em sua forma material ou no gênero textual, ora nos assuntos nela tratados. Buscaremos, aqui, indicar, as semelhanças e distinções temáticas encontradas nos quatro países estudados.
Em todos eles, verifica-se a existência das histórias tradicionais. Algumas dessas narrativas, reeditadas seguidamente durante dezenas e, às vezes, centenas de anos, que foram denominadas por Câmara Cascudo (1953) de «livros do povo», foram escritas — muitas delas a partir da tradição oral medieval árabe — entre os séculos XIII e XVIII em países europeus e foram provavelmente trazidas às Américas entre os séculos XVI e XVIII, principalmente por meio de edições em espanhol e português19. Originalmente, pareciam não visar a leitores «populares» e sofreram, em diversos países, adaptações, inclusive para outras linguagens (como as teatrais e as musicais), para se adequarem a um público mais vasto20. Esses são os casos, por exemplo, de Carlos Magno e dos doze pares de França, originalmente publicado em francês, em 1490; de Donzela Teodora, de origem árabe, traduzida para o castelhano em finais do século XIII ou inícios do XIV; de Pierre e Magalona (ou Princesa Magalona), do final do século XV; de Roberto do Diabo, publicada na Espanha em 1509; de João de Calais, publicada na França em 1723. Muitas dessas narrativas foram traduzidas para o espanhol e para o português a partir de versões da bibliothèque bleue francesa. Em cada um dos países estudados, essas histórias se tornaram literatura de cordel, com mais (caso de Portugal) ou menos (caso do Chile, onde a única referência localizada é A batalha de Oliveiros, pertencente ao ciclo de Carlos Magno) intensidade. No Brasil, essas narrativas foram denominadas, pelos poetas e pelos leitores/ouvintes de «romances», que normalmente possuem mais de 32 páginas e contam histórias de amor, de sofrimento, de luta, de príncipes, de fadas e reinos encantados21. Alguns desses romances não são adaptações de histórias criadas em outros locais, mas foram produzidos no país, como O pavão misterioso, de José Camelo Rezende reeditado sucessivamente há quase cem anos.
Um segundo grupo de temáticas encontrado nos quatro países estudados trata de relatos de acontecimentos. No Brasil, foram denominados de «folhetos de acontecido» ou «jornalísticos»; na Espanha e no Chile, de relaciones. Como afirma Botrel (1993), a seleção dos eventos que constariam nos impressos parecia obedecer a dois critérios: por sua importância nacional, como é o caso das guerras e das batalhas, das crises econômicas e políticas, das disputas eleitorais, dos eventos históricos, das grandes catástrofes (como terremotos e tremores de terra), ou por seu caráter extraordinário e sensacionalista, como é o caso de crimes, mortes, enchentes, secas, fenômenos prodigiosos, acidentes, assassinatos, tragédias e milagres. No Brasil, nesse grupo, destacam-se os folhetos sobre a vida e morte de Getúlio Vargas e grande parte daqueles escritos por Leandro Gomes de Barros, que constituem uma crítica política, social e moral ao país dos primeiros anos da República22. Ressaltem-se, ainda, os denominados «ciclo do boi» e o «ciclo do cangaço» - que deu origem a dezenas de títulos sobre personagens como Lampião e Antônio Silvino, alguns dos quais bastante satíricos, como é o caso do best-seller, reeditado há décadas, A chegada de Lampião no inferno, de José Pacheco.
Há, ainda, um terceiro grupo de temas encontrado nos quatro países: a religião e o misticismo. Na Espanha e em Portugal, assim como na França, esses impressos foram um importante instrumento na Contrarreforma Católica, colocando-se à serviço da propaganda religiosa23. Imprimiam-se sobretudo hagiografias, devocionários e histórias de personagens bíblicos. No Chile, esse tipo de produção está concentrado principalmente em uma autora: Rosa Areneda, classificada, por Lenz (1919), como a principal representante do «canto a lo divino". Muitos desses versos eram cantados, no país, em velórios. No Brasil, por sua vez, a produção classificada nesse grupo parece ter um caráter menos romantizado: além de folhetos livremente baseados em histórias bíblicas, notadamente do Antigo Testamento, como Sansão e Dalila, há uma forte presença de impressos que tematizam a vida e morte de beatos, como Antônio Conselheiro, Padre Cícero e, mas recentemente, Frei Damião. O diabo também foi objeto de vários folhetos, mas tratado de forma satírica24.
No quarto grupo encontrado nos quatro países, encontram-se temas que são adaptação de literatura denominada erudia. No Brasil, foram vertidos em versos e impressos em folhetos autores como José de Alencar. No Chile, Lenz (1919) analisou a transposição, para a métrica das hojas, feita pelo poeta Rolak, de um dos livros mais lidos da literatura «gauchesca»: El gaúcho Martin Fierro, de José Hernandes, publicado em BUeanos Aires, em 1872.
Outro grupo de impressos foi localizado, a partir dos estudos consultados, de forma significativa, no Brasil e o Chile: trata-se dos desafios, pelejas, cantorias e ABCs, no caso brasileiro, e das payadas e contrapuntos, no caso chileno e de outros países sul-americanos. A controvérsia poética era parte do repertório da poesia oral tradicional de vários países, inclusive entre os cancioneiros ibéricos. Embora estejamos nos referindo, aqui, mais à forma do poema do que ao seu conteúdo, em geral esses impressos versavam sobre «conhecimento e ciência» e objetivava mostrar a «sabedoria» do poeta (ou de um dos poetas, no caso das disputas, em que um dos dois é proclamado vencedor). Esse tipo de composição já era comum antes de se tornar escrita e impressa. Segundo Abreu (1999), «os cantadores chamavam de 'cantar em ciência' a proposição de charadas e de perguntas sobre Geografia, História, Mitologia greco-romana, História Sagrada» (p.78). Lenz (1919) acrescenta, a esse repertório, para o caso chileno, conhecimentos sobre literatura, astronomia e filosofia, que deveriam ser mostrados pelos palladores.
Localizamos, ainda, em três países -- Brasil, Portugal e Espanha --, referências a folhetos que narram aventuras de heróis e anti-heróis, como Cancão de Fogo, Pedro Malasartes, Pedro Urdemales, João Grilo, João Leso e Camões, todos com corpo franzino, mas capazes de fazer peripécias, vencendo obstáculos, enganando os poderosos. A figura do herói «ladino» e «astucioso» sempre foi muito popular, tanto na tradição ocidental quanto na oriental. João José da Silva, um dos editores de cordéis mais importantes nas décadas de 50 e 60 no Brasil, classifica o folheto Proezas de João Grilo como o «rei» dos livros cômicos, com cerca de 100 mil exemplares editados até o final da década de 5025.
Identificamos, também, a presença, apenas em Portugal e na Espanha, do teatro e seus subgêneros, na literatura de cordel26, que abordavam temáticas diversas: autos, estremezes, farsas, comédias e tragédias constituíram, em alguns momentos históricos, o principal acervo dos impressos portugueses.
Por fim, há diversos outros temas ou gêneros que, por serem minoritários no conjunto dos quatro países, não abordaremos aqui. Na Espanha, por exemplo, a literatura de cordel publicou também antologias de poemas da lírica tradicional e «micro-gêneros» exclusivos da poesia de cordel, como testamentos, perguntas, «dialoguillos, chistes, disparates, perqués, etc.»27. No Chile, há hojas específicas para serem lidas, cantadas e/ou recitadas em novenas e em velórios28. Há ainda brindis, que exaltam certas profissões -- como carpinteiros, sapateiros e ferreiros -, destacando a posição social que ocupam, os utensílios nelas utilizados e as virtudes daqueles que as exercem. No Brasil, temos, ainda, os «folhetos de safadeza», geralmente lidos/ouvidos por homens29.
Em relação à construção do texto, em Portugal e na Espanha, coexistiram a prosa, os textos teatrais e os poemas. Quando baseadas em livros tradicionais, essas narrativas, para corresponderem a supostas habilidades de um público mais amplo, sofreram diversas intervenções e adaptações, realizadas principalmente pelos editores, como mostram detalhadamente os estudos dedicados ao caso francês30. Os padrões narrativos nelas encontrados são bastante semelhantes, com ênfase na trama e na ação, centrada na luta entre o bem e o mal. Mesmo com essas características, muitas vezes os romances publicados nos folhetos portugueses tinham uma elaboração retórica com certa complexidade na forma, com a presença de períodos longos, orações intercaladas e um léxico por vezes erudito31. No caso espanhol, a prosa passa a predominar em relação ao verso sobretudo a partir do século XIX32 e a sintaxe utilizada apresentava, muitas vezes, características associadas à oralidade, com redundância e uma sucessão de orações circunstanciais33.
Em relação à literatura de cordel em verso, predominantemente em Portugal no século XVI, eram utilizadas quadras tradicionais ou cantigas narrativas34, assim como o verso octossilábico, atribuído, por Theophilo Braga (1867) à presença árabe na Península Ibérica. Baltasar Dias, considerado um dos maiores autores do gênero, escrevia em quintilhas heptassilábicas —métrica também já encontrada na poesia oral medieval—, em detrimento das estruturas clássicas35. No caso espanhol, predominavam os versos octossilábicos assonantados, que também facilitavam a memorização. No romance de ciego, por sua vez, predominavam as quintilhas e outras formas métricas populares, embora também tenham sido utilizadas formas eruditas, como o soneto36.
No Chile e no Brasil, esse tipo de literatura é encontrada em versos. No Brasil as quadras (ABCB), as sextilhas e as décimas (ABBAACCDDC) setessilábicas ou decassilábicas eram as formas mais comuns das composições. Na sextilha, os versos rimam na forma ABCBDB. Aceitam-se mais raramente também as setilhas (ABCBDDB). Essa delimitação formal característica da literatura de cordel é utilizada nos textos, segundo alguns autores, a fim de torna-los mais facilmente memorizáveis pelos poetas e pelo público. A métrica e a rima são tão definidoras do cordel brasileiro, que se tornou, ao longo do tempo, dois dos critérios mais importantes para julgar a qualidade de um poema. Em pesquisa recente, Melo (2017), ao estudar a consciência metatextual de poetas em relação ao gênero cordel, constata que, para eles, quem não souber conjugar «métrica, rima e oração» (expressão cunhada pelo poeta Manoel de Almeida Filho nos anos 1970), não pode ser considerado um bom cordelista. A oração seria o equivalente à coesão e coerência textuais — nas palavras dos poetas, em nome da qualidade dos versos não se pode «fugir do assunto».
Também no Chile, as composições impressas nas hojas eram em versos. A forma predominante era a décima octossilábica (com rimas ABBAACCDDC), conhecida como «espinela», por sua fixação ser atribuída ao poeta espanhol Vicente Martínez Espinel (1550-1642), já que estrofes com distribuição de rimas muito parecidas já eram utilizadas na poesia cortesã espanhola desde o século XV. Os poemas se iniciavam com uma quadra, em que era introduzido o tema, seguida das décimas e, por fim, de uma quinta (denominada de pie ou estrofa de despedida), que encerrava o poema. Lenz (1919) dá diversos exemplos de poesias encontradas em coletâneas de romanceiros e cancioneiros espanhóis para mostrar a sua semelhança com as encontradas na poesia popular chilena — a principal diferença na métrica estava na introdução da quinta estrofe nas hojas. Essa estrutura poética, de modo semelhante ao que ocorre no Brasil, também facilita a memorização dos versos, tanto pelos poetas quanto por seus leitores/ouvintes. Encontram-se, também, em menor número, nas hojas chilenas, quintilhas, normalmente dedicadas à poesia erudita, e tonadas e cuecas, originalmente compostas para se cantar e dançar.
Um dos aspectos mais definidores da fórmula editorial que dá uma certa unidade à literatura de cordel e suas congêneres em diferentes países é a sua materialidade. Embora com distinções bastante marcantes, alguns elementos aproximam esses impressos nos diversos casos.
Nos quatro países analisados (e, em outros, como França, Inglaterra e Itália), o papel utilizado para imprimir as publicações é barato, de baixa gramatura e qualidade inferior. Os tipos utilizados para a impressão eram, frequentemente, gastos e de pouca legibilidade. A análise de Nogueira (2012) para o caso português poderia se estender aos demais países estudados: «A precariedade da edição diz-nos que se procurava sobretudo a economia: a impressão pouco cuidada, distribuição assimétrica da tinta, numerosas galhas tipográficas, papel granuloso de qualidade deficiente, paginação errada ou inexistente, brochura incipiente» (p.199). No caso brasileiro, em pesquisa anterior37, foi possível constatar, por meio da análise das características tipográficas de uma centena de folhetos que, nos tempos iniciais da produção do gênero, entre o final do século XIX e o início do XX, a edição era mais bem cuidada, aproximando-se do perfil acima no momento de sua popularização, a partir dos anos 1930.
Um outro elemento comum diz respeito à presença das ilustrações que, em geral, eram em número reduzido (uma ou duas), normalmente precedendo o texto, podendo ser na capa. Essas imagens eram produzidas em pedra (litogravura), em metal (zincogravura) ou em madeira (xilogravura). Quando eram produzidas especificamente para o impresso, normalmente eram feitas em madeira, como ocorre na maioria dos impressos chilenos. No Brasil, a xilogravura tornou-se predominante principalmente a partir da década de 195038. Nos quatro países, assim como ocorreu em outros lugares, observou-se também a prática de reaproveitamento de clichês, originalmente produzidos para outros fins: a imagem nem sempre se relacionava com o texto, mas era um auxiliar poderoso na identificação da temática tratada. Cumpria também uma função estética, tornando o impresso, aos olhos dos leitores/ouvintes, mais «bonito» e aparentemente mais bem cuidado do ponto de vista editorial, como ocorreu no Brasil39. No país, em que o auge da produção de cordel coincide com a proliferação dos cinemas, muitos folhetos traziam clichês de personagens hollywoodianos, reaproveitados do material de divulgação dos filmes em cartaz40.
Os formatos e o número de páginas, por sua vez, diferem nos casos estudados. No Brasil, os folhetos de cordel medem, em sua forma clássica, 11cm x 16cm, o que corresponde ao formato in-octavo, ou seja, a uma folha de papel (cujo tamanho padronizado era 32cm x 44cm) sobrada três vezes, o que resulta em livretos com um número de páginas sempre múltiplo de oito. Os diferentes cadernos eram costurados entre si, de modo a compor um único volume. Entre os poetas e os leitores/ouvintes, o número de páginas estava vinculado ao próprio conteúdo do livreto: se tivesse de 32 a 34 páginas, tratava-se de um «romance", ou seja, histórias baseadas em narrativas tradicionais ou elaboradas pelo poeta que trouxessem elementos do maravilhoso; os mais curtos (entre oito e 24 páginas), por sua vez, eram reconhecidos como «folhetos» e versavam entre acontecimentos, vida e morte de personalidades, entre tantos outros temas41. Em Portugal, os livretos apresentavam grande heterogeneidade de tamanho, predominando aqueles considerados médios, que mediam 12cm x 15cm ou 15cm x 20cm42. Quanto ao número de páginas, variavam entre oito e 64 páginas, embora não fossem raros os livretos com um número ímpar de páginas43.
Na Espanha, a literatura de cordel foi impressa, inicialmente, em in-folio, o que correspondia ao tamanho de 22cm x 32cm. Esse era o formato adotado tradicionalmente pelos cancioneiros44. No século XVI, passou a ter o formato que seria mais utilizado a partir de então: era impressa em in-quarto, ou seja, a folha de papel (de uma a quatro) era dobrada duas vezes, o que resultava em um livreto que media 16cm x 22cm, em geral de uma a oito páginas45. Botrel (1996) indica, no entanto, que outros formatos também coexistiam, como aquele de uma só folha (volante), impressa em frente e verso (recto-verso) ou somente de um lado (recto), e coleções de até sete cadernos costurados. Também no caso espanhol, o número de páginas está relacionado ao conteúdo dos impressos: as histórias (narrativas em prosa) eram mais longas e os demais subgêneros, que possuíam um número menor de páginas, eram denominados de libretos.
No Chile, o formato predominante foi o das folhas volantes, impressas normalmente de um único lado, onde se publicavam de quatro a oito décimas, todas de um mesmo autor. Os pliegos eram encabeçados por gravuras e por um título impresso em letras muito grandes, que em geral se referiam a uma ou duas das cinco ou seis poesias nele contidas. Em alguns casos, cuecas, tonadas, cantares e outras formas de poesia oral chilenas eram impressas nos espaços que sobravam, para que houvesse um aproveitamento total do papel46. O nome do poeta era publicado no é da página, com a indicação de seu endereço para que o leitor pudesse adquirir o impresso. Alguns autores publicaram em outros formatos, como é o caso de Bernardino Guajardo, que teve suas obras editadas em nove pequenos tomos (em in-16º), de 96 páginas cada um47. As folhas, nos primeiros anos de edição, mediam 26cm x 38cm, mas era possível encontrar, na época em que Lenz (1919) fez o estudo -- final do século XIX -- os versos impressos em folhas de maiores dimensões: 35cm x 56cm e até mesmo 55cm x 75cm.
No processo de criação e fixação dessa fórmula editorial, os diferentes atores envolvidos em sua produção tiveram papéis e importâncias distintos nos quatro casos analisados. Os autores parecem determinantes nos casos brasileiro e chileno. Eram poetas populares que já viviam da poesia: repentistas, cantadores, poetas, cantores, verseros. Eram, com algumas exceções, oriundos do meio rural, frequentemente pouco escolarizados, mestiços, que migraram para o meio urbano para que pudessem ter meios de tornar impressos seus versos. A linguagem escrita por eles utilizada aproximava-se da norma padrão, a não ser quando criavam alguns personagens com fortes marcas dialetais, como é o caso do huaso chileno ou do matuto brasileiro.
No Brasil, aos poucos a autoria foi sendo apagada pela figura do editor-proprietário que, por meio da compra dos direitos da obra, poderia, inclusive, assumir a sua autoria. Nesse processo, destaca-se o papel de João Martins de Athayde. No entanto, diferentemente do que aconteceu em outros países, pode-se afirmar que o editor dos folhetos brasileiros pouco interferia no texto propriamente dito. Em estudo já citado48, identificamos mudanças na mise-en-page dos versos (no início, as estrofes poderiam ser «cortadas» quando se passava de uma página a outra, sugerindo a leitura silenciosa; depois passaram a ser dispostas na mesma página, remetendo à leitura oralizada) e na própria qualidade gráfica dos folhetos. Esses dados, em conjunto com outros, indicaram uma popularização do gênero ao longo das seis primeiras décadas de sua história.
Em Portugal e na Espanha, o perfil dos autores e seu papel na consolidação do gênero -- em relação aos editores -- parece ter sido um pouco diferente. Em primeiro lugar, observa-se a presença de autores de literatura erudita, que tiveram suas obras adaptadas para a nova fórmula editorial, em uma dimensão muito maior. Entre os autores setecentistas portugueses da literatura de cordel, certamente havia poetas populares -- como Bathasar Dias -- e quase anônimos, professores, médicos, padres, militares e atores, o que, para Nogueira (2012), contribuiu para que particularmente o teatro de cordel fosse considerado de prestígio, muitas vezes identificado a Gil Vicente e outros autores da «escola vicentina». No século XVIII, ainda que o teatro fosse o gênero predominante, foram localizadas muitas traduções de livros para a literatura de cordel. Além das obras já citadas, houve adaptações de escritores como Molière, Corneille e Voltaire, por exemplo49. Muitas dessas obras foram traduzidas para o português e reproduzidas sem referências à autoria. Os direitos de publicação pertenciam, como ocorreu posteriormente no Brasil, ao editor -- e não ao autor.
Na Espanha, parece ter ocorrido processo semelhante, embora com maior presença de autores desconhecidos e poetas populares. Destaca-se, mais uma vez, o papel dos cegos, que raramente eram os autores das obras, mas cumpriam o papel de recitadores, editores e vendedores. Segundo Botrel (1993), quando precisavam de um texto sobre algum acontecimento, por exemplo, recorriam a profissionais. Responsabilizavam-se, então, pela edificação das obras, realizando, como no caso português, diversas adaptações dos originais, fossem elas orais ou escritas. Nesse processo, muitas vezes o nome do autor era suprimido, o que torna esse gênero, na análise do autor, mais anônimo do que individualizado. Mandavam, então, imprimir pliegos, em pequenas tipografias, contratadas para esse fim. Pareciam ter certa autonomia em relação a todo o circuito de comunicação de suas obras: criavam, escreviam (ou pediam para que alguém escrevesse), editavam (ou mandavam editar) e vendiam (ou contratavam revendedores) os impressos.
Todo esse processo visava a alcançar um vasto público, embora não tenha contornos precisos, era composto, pelo menos no auge da produção e fixação do gênero, na Espanha, no Brasil e no Chile, predominantemente por camadas populares urbanas, com baixos níveis de escolaridade (ou analfabetos) que, por meio da leitura oralizada e coletiva, aproximavam-se da cultura escrita50. Aos poucos, esse tipo de impresso ruraliza-se, o que foi facilitado pela presença de vendedores ambulantes, dos correios e das ferrovias, a depender do caso. Em Portugal, o público parecia ser mais diverso, pois era composto, segundo Nogueira (2012), entre os séculos XVI e XVIII, pela pequena nobreza, proprietários de terras, alguns camponeses abastados, artesãos e comerciantes. O autor afirma que, no século XIX, o público passa a incluir também os leitores/ouvintes rurais. Trata-se, portanto, de leitores/ouvintes com perfil bastante heterogêneo. Em todos os casos, o cordel parecia cumprir, para esses leitores, papéis informativos e utilitários, mas, também e talvez sobretudo, estético e de lazer, como ocorre em qualquer obra literária. Nas palavras de um dos entrevistados para pesquisa anterior, que foi leitor/ouvinte de cordel brasileiro entre os anos de 1930 e 1940 em Pernambuco: «Dava mais graça à vida, né? Matava os temor da vida. Pessoa tava acabrunhada, lia uma historinha dessa e ia até... desafiava os outros.»51.
À guisa de conclusão, podemos afirmar que a literatura de cordel apresenta elementos comuns aos quatro casos estudados, mas também especificidades. Entre os aspectos semelhantes, estão a utilização e o aproveitamento de papel de baixa gramatura e qualidade; a existência de uma rede própria de edição e circulação desse tipo de impresso; a presença de um público leitor -- com exceções -- pouco familiarizado com a cultura escrita; a ocorrência de temáticas e, em alguns casos, de narrativas comuns a vários países; o hibridismo entre o oral e o escrito nos modos de escrever e de ler. O formato, por sua vez, apresenta distinções, embora em todos os casos observe-se uma preocupação com o aproveitamento racional do papel.
No Brasil e no Chile, são escritos somente em versos e a métrica e a rima -- embora distintas entre si -- são bastante controladas e definidoras do gênero; o papel do autor, muitas vezes também poeta oral e, ao mesmo tempo, editor, parece ter sido mais importante do que o do editor propriamente dito, mesmo quando as tipografias se tornaram especializadas e profissionalizadas; observa-se a ausência de alguns gêneros encontrados em outras partes, como o teatro; os cegos, com uma ou outra exceção, não tiveram papel importante na configuração e disseminação desse tipo de impresso.
A análise realizada permite, ainda, compreender as complexas relações estabelecidas entre diferentes espaços e temporalidades, na constituição dessa fórmula editorial, fornecendo subsídios para se romper com as ideias de origem e de influência (no singular e em uma única direção) e se repensar supostas hierarquias culturais. Nesse sentido, a realização de estudos mais aprofundados em uma escala mais ampla, envolvendo um número maior de países, seria fundamental.
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