Os editores Garnier: da França ao espaço transatlântico
As Livrarias-Editoras Garnier e seus negócios estiveram entre as primeiras empresas internacionais...
Edição é um termo polissêmico, que remete ao ato de editar, ou seja, conceber, planejar, preparar, selecionar, publicar e assegurar a difusão de impressos nos mais diferentes formatos e suportes. Pressupõe um sujeito social, o editor, responsável por decidir o que será (ou não) colocado à disposição do público. Emissões de rádio e de televisão demandam tarefas de natureza similar, tanto que o verbo e os substantivos que dele derivam desde logo foram integrados ao universo vocabular desses meios de comunicação. Cabe esclarecer, contudo, que aqui o desafio recai sobre a edição de textos, prática que conecta editores e seus catálogos a autores, ilustradores, tradutores, livreiros, agentes literários, leitores e também os por vezes esquecidos fabricantes de equipamentos gráficos e os trabalhadores que transformam manuscritos em impressos.
A simples enumeração já alerta para a necessidade de ter em conta as condições técnicas vigentes em diferentes momentos históricos, seja em relação à produção de matérias primas, às tipografias e seu maquinário, aos sistemas de transportes, aos meios de difusão da informação, circunstâncias que alteraram-se significativamente a partir de meados do Oitocentos e que, se não inauguraram a circulação dos impressos em âmbito transatlântico, dinamizaram-na em termos até então inéditos.
Comumente associado à indústria, ao progresso, ao crescimento do mundo urbano e aos intensos deslocamentos populacionais, o século XIX descortinou intercâmbios em diferentes sentidos e direções. Compreende-se que a estrada de ferro seja frequentemente tomada como um dos símbolos dos novos tempos, marcados pela rapidez, eficiência e que aludia à "própria força do mundo industrial, irresistível e inspiradora, fazendo seu caminho onde nada previamente havia passado, exceto mulas e carroças".1 Musa de poetas, romancistas e pintores, a locomotiva alterou a percepção que se tinha do espaço, da velocidade e da passagem do tempo. Flaubert chegou a descrever Cristo "como um maquinista conduzindo a locomotiva da História", enquanto o crítico George Rivière, admirador da série de pinturas de Claude Monet sobre a Gare Saint-Lazare, engrossava a legião dos que recorriam à imagem de seres prodigiosos para definir as locomotivas, caracterizadas como "um animal impaciente e impetuoso, animado, e não fatigado, pela tração (...). Em volta do monstro, homens pululam como pigmeus aos pés de um gigante".2
A escolha é compreensível. Majestosas estações ocupavam lugares privilegiados no espaço urbano das capitais e, ainda que com dimensões mais modestas, multiplicavam-se no decorrer dos longos trajetos das estradas, compondo a paisagem cotidiana de significativas parcelas da população, para as quais o embarque nos trens tornou-se rotina.
Os navios, ainda que tivessem deixado para trás a dependência dos ventos e das velas e, portanto, as incertezas quanto à segurança, regularidade e duração das viagens, parecem ter impressionado menos os contemporâneos, tal como indica o elenco de transformações normalmente evocado para caracterizar o Oitocentos, o que em nada diminui a relevância das ferrovias para o circuito da difusão do impresso, inclusive com a introdução de novos formatos, fosse de livros ou de periódicos, ofertados em movimentados pontos de venda nas estações, em sintonia com as necessidades dos apressados viajantes.3
Entretanto, cabe destacar que, graças à introdução do vapor nas rotas do Atlântico Sul em meados do século XIX, a travessia entre a Europa e o Rio de Janeiro diminuiu quase à metade (de 54 para 29 dias), trajeto que, por volta da década de 1880, passou a ser feito em 22 dias.4 Observe-se o mapa com o percurso dos serviços postais para o Brasil e a região do Prata, a cargo da empresa Messageries Maritimes, subvencionada pelo governo francês para realizar a tarefa, efetivamente iniciada em 1861 e que incluía passagem por Lisboa e cidades do norte da África.5
Até a chegada dos aviões, foram os navios que, ao longo de séculos, conectaram os dois lados do Atlântico e transportaram, com graus variados de rapidez e segurança, mercadorias, pessoas, mas também ideias, valores, saberes e práticas culturais que compõem uma intrincada teia, cujo significado não se expressa apenas nos registros de alfândegas ou em dados relativos ao comércio internacional. Impressos de toda ordem (livros, em folhas soltas ou já encadernados, almanaques, jornais, revistas e panfletos) cruzavam o oceano acomodados ao lado de uma miríade de produtos que abarrotavam os largos porões, enquanto muitos dos intermediários e mediadores que envolveram-se com a edição, em diferentes momentos históricos, também embarcavam em viagens que, para além de deslocamentos espaciais, davam margem a intercâmbios e trocas interculturais.
Contudo, a ênfase colocada na trajetória da nação acabou, muitas vezes, por circunscrever autores, editores, impressores, livros, jornais e revistas ao âmbito nacional, esmaecendo o circuito de trocas e apropriações que se efetivavam a despeito das demarcações geográficas. Veja-se o exemplo do Brasil, que esteve longe de ser um caso excepcional, país no qual parte significativa do circuito da edição durante o Império (1822-1889) esteve nas mãos de estrangeiros, aspecto que ultrapassa o rol das curiosidades. O fato é que as fronteiras físicas não foram suficientes para impedir a disseminação de bens e práticas culturais, que assumiram dimensões claramente transatlânticas numa conjuntura marcada pelo avanço do capitalismo industrial, aceleração das comunicações e difusão das informações, aperfeiçoamento dos meios de transportes e de impressão, crescimento da urbanização e do letramento, como foi o século XIX. Justifica-se a tarefa de analisar o circuito de produção, difusão e consumo de livros e periódicos a partir de perspectiva e cenário mais amplo, o que envolve levar em conta gêneros textuais, soluções gráficas, projetos, interesses e estratégias compartilhados,6 que disseminavam-se em diferentes direções, ainda que essas troca de bens econômicos e simbólicos não deixassem de comportar assimetrias.
Nunca é demais insistir que a existência dos impressos demanda mais do que indivíduos que escrevem, é preciso transformar o manuscrito num produto, o que requer que sejam compostos (manualmente, letra por letra; com as lino/monotipos ou eletronicamente), impressos (em prelos de madeira movidos pela força humana, em gigantescas rotativas ou por impressoras controladas digitalmente) e integrem processos de distribuição, venda e consumo.
Fica evidente que a edição, que assumiu no decorrer do século XIX o caráter de indústria complexa, exigia considerável inversão de capitais e acumulava significativos avanços técnicos na produção da matéria prima (papel) e do maquinário. Os parques gráficos mundo afora constituem-se num aspecto a ser considerado e que implicavam numa balança de relações francamente favorável a europeus e norte-americanos, os grandes inventores e exportadores de máquinas de escrever, linotipos e rotativas. O exemplo de Marinone é, nesse sentido, paradigmático, pois o nome do fabricante francês tornou-se sinônimo de eficácia e modernidade,7 tanto que os jornais e revistas brasileiros que adquiriam seus produtos faziam questão de alardear o fato a leitores e assinantes. Não tardou para que houvesse, em escala atlântica, certo grau de homogeneidade no que respeita ao processo de produção, atestado pelo florescente mercado internacional de equipamentos gráficos, o que também implicava no deslocamento de técnicos que cruzavam o oceano para instalar e ensinar os operários como manejar os seus novos instrumentos de trabalho, numa troca entre saberes e práticas que ainda demanda análises mais detidas.
Alerte-se, porém, que a referida homogeneidade em termos técnicos esteve longe de significar igualdade no que respeita à capacidade produtiva e à qualidade final do produto. Eram justamente as vantagens competitivas, no que respeita aos preços da matéria prima, composição, impressão e excelência dos resultados, que permitem compreender a decisão, frequente não apenas no caso brasileiro, de enviar para Paris manuscritos de livros e periódicos que voltavam para a América Latina. A tensão gerada por escolhas calcadas na boa lógica econômica foi explicitada na dura condenação feita pelo jornal O Tipógrafo ao festado editor Baptiste-Louis Garnier, que regularmente remetia seus manuscritos para a França:
Desta boa capital [Garnier] envia as obras ao seu grande Paris; lá ela é composta, revista, encadernada etc. e volta ao Rio de Janeiro; aqui é vendida pelo preço que lhe convém dar a cada exemplar e dessa forma a mão de obra é sempre estrangeira ao passo que as nossas oficinas tipográficas definham e os tipógrafos brasileiros veem-se a braços com todas as necessidades e muitos compositores por aí andam sem achar trabalho, e portanto sem os meios de subsistência. Até a própria Revista Popular, hoje transformada em Jornal das Famílias [...] é impressa em Paris. E é esse homem que vive do nosso país, que nos arranca o trabalho para mandá-lo aos estranhos, a quem o nosso governo condecorou há pouco tempo, pelos importantes serviços prestados à literatura nacional. Noticiando estes fatos, os lamentamos como tipógrafos, por faltar-nos às vezes o trabalho, único recurso de que podemos dispor para as comodidades da vida, e nos admiramos que esse proprietário deixe tipografias tão bem montadas como há algumas nesta corte para recorrer às da Europa.8
Porém, antes de chegar às mãos de tipógrafos compositores ou de linotipistas, o texto já passara pelo crivo do editor9 que, por largos períodos, também ostentou o título de livreiro, a exemplo do já citado Garnier. Aliás, compositores, impressores, editores e livreiros constituem-se em figuras sociais, cuja função desempenhada comportou consideráveis alterações ao longo do tempo. A atuação de cada um adquiriu sentidos diversos e que acabaram por configurar áreas específicas na cartografia do mundo editorial, o que alerta para complexos jogos de distinção entre atividades manuais, comerciais e intelectuais que, aos poucos, tenderam a instituir delimitações próprias.
Personagens centrais do mercado da edição, livreiro e/ou editores, embalados pelo interesse em expandir seus negócios, estabeleceram-se em diferentes países e atuaram no sentido de ampliar a circulação de seus produtos, o que contribuiu para a difusão da literatura e dos protocolos da crítica literária e artística, dos tratados filosóficos e das obras historiográficas, das teorias políticas e das explicações científicas, para citar alguns exemplos. Produtos que demandavam, para serem consumidos, levar em conta o público a que se destinavam. A questão das traduções e dos tradutores abre todo um capítulo a respeito dos processos de adaptação, apropriação, releituras, transposição, reelaboração e mesmo subversão dos significados e sentidos originais de uma obra. Entra em cena a trajetória, recente ou secular, da produção nos diferentes campos do saber, o que convida a abandonar as noções de cópia ou de recepção passiva, seja para um título em particular ou para um projeto editorial de largo escopo, que tanto pode envolver interesses estritamente comerciais, seja de uma família ou dos enormes conglomerados contemporâneos, como originar-se no bojo de uma verdadeira guerra cultural, apresentada sob o manto da colaboração e da cooperação, como se observa em projetos editoriais concebidos durante a Guerra Fria.
Os catálogos assumem, desta forma, papel dos mais relevantes, pois permitem colocar questões a respeito da historicidade de fórmulas editorias, que remetem a práticas compartilhadas em escala transatlântica e informam sobre concepções quanto ao público leitor (infantil, masculino, feminino) seus interesses (literário, técnico, pedagógico, político, religioso, autoajuda...) e poder aquisitivo, manifesto nas escolhas quanto à gramatura do papel, natureza da capa, tipo de encadernação, presença/ausência de ilustrações, grau de legibilidade e qualidade da revisão, por exemplo, que distanciam, por exemplo, edições luxuosas da rica produção dos folhetos de cordel. As interconexões entre leitura e consumo convidam as refletir acerca da valoração (positiva ou negativa) das escolhas de diferentes grupos sociais e das prescrições que cercaram a boa e a má literatura e que vitimou, por um bom tempo, tanto romances quanto histórias em quadrinhos.
A internacionalização dos negócios editoriais pressupõe o acesso a diferentes mercados que, pelo menos na América Latina, expandiram-se graças ao significativo aumento do letramento observado no decorrer do século XX. Não por acaso assistiu-se ao processo de profissionalização do mundo letrado, o que também implicou na luta em prol de um estatuto jurídico que reconhecesse e defendesse a propriedade intelectual. Para os autores de dimensões transnacionais, avulta a preocupação em negociar e gerir as traduções, mas também os chamados direitos secundários e derivados, que se multiplicaram junto com a indústria cultural, a exemplo das adaptações para cinema e televisão e o licenciamento de produtos de toda sorte, tanto que a figura do agente literário tendeu a ganhar crescente protagonismo.
O panorama apresentado, ainda que bastante simplificado, indica a extensão e a complexidade contida na atividade editorial, que expandiu-se sobremaneira com a industrialização e a urbanização. Intenso tráfego, em diferentes direções e sentidos, uniu os continentes banhados pelo Atlântico e os estudiosos seguem às voltas com o desafio de distinguir as linhas de força dessas trocas, entender seus significados e efeitos em função de recortes temporais e situações históricas específicas. Nos dias que correm, parte significativa dos intercâmbios já prescindem dos meios físicos de transporte graças às infovias, que realizam a interconexão imediata entre escritores/as e leitores/as. Cabe mesmo perguntar até que ponto práticas, distinções e hierarquias que atravessam o mundo dos impressos continuarão vigentes, uma vez que não parece demais inquerir se não é a própria lógica que tem presidido o setor, da produção aos pontos de venda, que estaria em vias de conhecer profundas mutações. Ainda uma vez, processos de edição parecem estar no limiar de serem ressignificados.10
Eric Hobsbwam, A era do Capital. 1848-1875 (Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 1977), 74.
APUD: Meyer Schapiro, Impressionismo. Reflexões e percepções. (São Paulo, SP: Cosac & Naif, 2002), 114 e 118, respectivamente.
Para um estudo das múltiplas funções exercidas pelos livreiros e modalidades de venda dos livros ao longo do tempo, em diferentes espacialidades, ver: Jean-Yves Mollier, Histoire des libraires et de la librairie de l\'Antiquité jusqu\'à nos jours (Paris: Imprimerie Nationale, 2021).
Informações em Laurence Hallewel, O livro no Brasil. Sua história. 2ª ed. rev. e ampl. (São Paulo: Edusp, 2005), 199-220.
Dados sobre o trajeto dos navios são fornecidos por: Henrique Louis (dir.). Les colonies françaises : notices illustrées - le Sénégal et Rivières du Sud (Paris: Maison Quentin, 1890), 164-165 : "Les paquebots des Messageries ne touchent qu'à Dakar, puis ils vont au Brésil et à la Plata. Ils partent de Bordeaux le 5 et le 20 de chaque mois (à 11 heures du matin), et doivent arriver à Dakar le 12 (à minuit) ou le 29 (à 10 heures du matin). Le paquebot du 5 est le plus rapide (ligne subventionnée), sa vitesse réglementaire ne doit pas être au-dessous de 14 nœuds à l'heure, celle du 20 (départ non subventionné) est en moyenne de 12 nœuds 60. Ces navires touchent à Lisbonne, le 7 de chaque mois (à 4 heures du soir) et le 24 (à 6 heures du matin). Au retour, les paquebots des Messageries touchent à Dakar, ceux de la ligne subventionnée du 19 au 20 de chaque mois (de 7 heures du soir à midi le lendemain), et ceux de la ligne non subventionnée le 10 (de 4 heures du matin à 2 heures du soir). Ils sont de retour à Bordeaux le 27 et le 18 de chaque mois)".
Para o caso dos impressos periódicos, ver: Marie-Ève Thérenty, La littérature au quotidien. Poétiques journalistiques au XIXe siècle. (Paris: Seuil, 2007); Dominique Kalifa et al., La civilisation du journal. Histoire culturelle et littéraire de la presse française au XIXe siècle (Paris: Nouveau Monde Éditions, 2011) e Évanghélia Stead e Hélène Vérdine, L'Europe des revues (1880-1920). Estampes, photographies, illustrations (Paris: Presses de l'Université Paris-Sorbonne, 2008).
Consultar: Éric Le Ray, Marinoni. Le fondateur de la presse moderne (1823-1904) (Paris: L'Harmattan, 2009).
"As obras da livraria Garnier". O Tipógrafo. Rio de Janeiro, ano 1, p. 4, n. 6, 05/12/1867, grifo no original. Anos depois, a mesma crítica encontra-se em "O ensino profissional," Revista Tipográfica, ano 1, n. 30, p. 3, 29/11/1889.
A respeito do papel do editor, em ampla perspectiva histórica, consultar: Brigitte Ouvry-Vial e Anne Réach-Ngô, L'acte éditorial. Publier à la Renaissance et aujourd'hui. (Paris: Éditions Classiques Garnier, 2010).
André Schiffrin, Words & Money (London: Verso, 2010).