Revista Cine Cubano
A revista Cine Cubano, criada em 1960, promoveu por mais de quatro décadas a circulação de notícias e...
A seção se ocupa das práticas históricas e culturais que envolvem o cinema no espaço transatlântico, analisando e mapeando seus diferentes vetores de mediação: a circulação de filmes, textos e teorias; o intercâmbio institucional; os agentes envolvidos nesse processo; os espaços de sociabilidade e consumo; e as representações produzidas pelo cinema.
Ao longo da história do cinema foram vários os momentos de conexão entre os espaços transatlânticos, indicativos de uma circulação secular que pode ser atestada de muitas formas. Em primeiro lugar, pela formação de um mercado exibidor que desde o início do século XX tinha como centros irradiadores a França e os Estados Unidos, trazendo junto com os filmes modos de comportamento, como foi o caso da presença do cinema francês na cidade do Rio de Janeiro, Brasil, na década de 1910: a referência ao elegante, ao considerado civilizado e moderno passava pelo contato com as imagens vindas de Paris, inspiração para o como vestir-se e comportar-se.
Com a consolidação de um circuito, cada vez mais espraiado, de salas de exibição o cinema se tornou meio de comunicação de massas, participando de forma direta na formação cultural de muitas sociedades. Esse dado se torna mais evidente logo após a Grande Guerra (1914-1918), quando os Estados Unidos, um dos vitoriosos desse conflito, passaram a dominar o mercado cinematográfico mundial.
Esse domínio, além de econômico, foi estético, atestado pelo controle de um método refinado de narração e pela própria ideia de cinema-espetáculo que mobilizava recursos técnicos afirmadores de sua superioridade, constituindo o trabalho do diretor David Griffith, em particular os filmes Birth of a Nation (1915) e Intolerance (1916), uma boa lição a ser seguida. Dessa forma, as duas dimensões confluem em filmes que procuraram representar os Estados Unidos como exemplo a ser seguido. Não à toa muitos constataram nos anos 1920 e 1930, com a chegada do cinema sonoro, que o mundo se americanizou, americanização que teve no cinema um de seus esteios mais sólidos. Um dos exemplos nesse sentido foi o star system, formulado nos anos 1910 por meio dos departamentos de marketing das grandes produtoras norte-americanas, também foi um eixo importante na constituição de imaginários que atravessaram o século XX. Os filmes e as revistas de cinema dirigidas aos fãs, como Photoplay, sugeriam aos espectadores e leitores como deveriam se comportar, vestir-se e, fundamentalmente, consumir, dado que com as imagens e textos vendiam-se também o American way of life.
Se houve esse movimento de homogeneização e padronização cultural e econômica, tivemos também inúmeras formas de resistência que se configuraram no espaço transatlântico no decorrer do século passado. O primeiro deles pode ser localizado na circulação de teorias sobre o cinema e nos diálogos estabelecidos com o fazer cinematográfico. É conhecida a importância dos conceitos formulados pelas chamadas vanguardas históricas nos anos 1910 e 1920 na Europa, que tem como ponto de partida, em 1911, o Manifesto das Sete Artes, escrito por Ricciotto Canudo em Paris, fundamental na afirmação da singularidade e modernidade artística do cinema, gesto que terá inúmeros desdobramentos nas décadas seguintes. Dentre eles, podemos citar o movimento dos cineclubes, espaços destinados à apreciação dos filmes como obras de arte, deixando de lado o aspecto comercial inerente à atividade e valorizando toda e qualquer iniciativa autoral. Trata-se da origem da cinefilia, que foi cultivada na França e que também encontrou em diversos países repercussão. A geração do Cahiers du Cinéma nos anos 1950, capitaneada por André Bazin, deu continuidade à essa tradição, importante na formação de muitos diretores preocupados em repensar o cinema nos anos 1960, articulando política e estética em uma perspectiva engajada, preocupada não apenas com a mudança de rumos do seu fazer artístico, mas da sociedade de uma maneira geral.
Os novos cinemas surgidos nesse período, como escreve Ignácio Del Valle Dávila em verbete escrito para esta seção, representam "un fenómeno cultural donde se manifiesta de manera evidente una dinámica de intercambios, transferencias y circulaciones de bienes culturales y de debates teóricos que trasciende las fronteras nacionales", intercâmbios que se realizam no espaço transatlântico. Essa nova geração de diretores "adoptará un discurso político cada vez más explícito y militante", militância estimulada pela Revolução Cubana (1959) e pelo processo de independência dos países africanos e, ao mesmo tempo, confrontada pela instituição de regimes autoritários em muitos países naquele período, em um contexto marcado pela Guerra Fria.
Cineastas como Glauber Rocha, Santiago Álvarez, Chris Marker, Ruy Guerra, Orson Welles, Sarah Maldoror, Paulin Soumanou Vieyra atuaram como verdadeiros passeurs culturels, procurando inverter a lógica de consumo dada pelas grandes corporações a partir da: produção de filmes sobre a realidade a ser modificada, com o deslocamento constante dos cineastas por esse espaço transatlântico em ebulição, como os filmes da francesa Maldoror e do cubano Álvarez na África indicam, bem como o trânsito de Glauber por Cuba, Estados Unidos, França, Itália e Quênia; elaboração teórica de projetos que envolviam a concepção de um cinema que atravessasse essas realidades, como foi a proposta do "cinema tricontinental" de Glauber ou a leitura que nos anos 1960 o diretor fez de Frantz Fanon, incorporando a violência como ato criativo em poética sintetizada no manifesto que ficou conhecido como "estética da fome"; criação de redes de solidariedade entre os que enfrentavam as brutais ditaduras do cone Sul da América nos anos 1960 e 1970, podendo ser o cinema de Marker pensado também nesta chave.
Parte desse processo se configurou também a partir da existência de espaços que pudessem reunir e exibir esses filmes e permitir a circulação de agentes culturais, confluindo e propagando as iniciativas cinematográficas empenhadas com essa perspectiva de transformação. Nesse sentido, os festivais de cinema, que surgem nos anos 1930 como lugares de exercício de diplomacia cultural e de afirmação da superioridade de uma cinematografia como expressão do domínio pretendido por um país, como foi o caso do Festival de Veneza e depois o de Cannes, passaram nos anos 1960 e 1970 a se constituir como lócus de articulação política desse novo cinema, como foi o caso Festival de Viña del Mar (1967, 1969) e do Festival Panafricano de Cinema e Televisão de Ouagadougou (criado em 1969).
As instituições também desempenharam um papel importante na formação de espaços transatlânticos próprios ao cinema. A Fédération Internationale des Archives des Films (FIAF), fundada em Paris em 1938, por exemplo, congrega todas as cinematecas que se dedicam à preservação da memória audiovisual, tendo um papel importante, em uma relação historicamente marcada por tensões, com os arquivos fílmicos do chamado 'terceiro mundo'. O Instituto Cubano del Arte e Indústria Cinematográficos (ICAIC), objeto nesta plataforma de estudo de Mariana Villaça, criado pelo governo de Fidel Castro em 1959, se tornou um lugar de encontros e de trocas entre cineastas estrangeiros, espaço de incubação de diferentes projetos. Além de Glauber, foram muitos os diretores e homens ligados ao mundo do cinema que estiveram na instituição, como Cesare Zavattini, Joris Ivens, Chris Marker, Agnès Varda, Jean-Luc Godard, formulando projetos e articulando parcerias destinadas a realizar filmes que retratassem a luta pela libertação dos países africanos de suas antigas metrópoles, como vemos no apoio dado pelo ICAIC à produção de filmes em Moçambique. As coproduções representam também momentos em que a dimensão transatlântica é mobilizada, como é o caso das iniciativas da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), criada em 1996 para financiar projetos cinematográficos envolvendo os países de língua portuguesa na África, América e Europa.
Outro espaço de trocas e encontros transatlânticos foram as escolas de cinema, como l'Institut des hautes études cinématographiques (IDHEC) de Paris e o Centro Sperimentale di Cinematografia de Roma, "lugar de formación, circulación e intercambio para algunos cineastas relevantes de lo que entonces se conocía como Tercer Mundo", como aponta Ignacio Del Valle Dávila, em "Los nuevos cines en el espacio atlántico".
Por fim, as Exposições Universais também abriram suas portas para o cinema. Desde o final do século XIX, diversos filmes circularam pelos espaços expositivos a fim de perpetuar pela imagem cinematográfica determinada memória histórica, sendo o cinema utilizado cada vez mais como "vitrine" em que a nação projeta as virtudes nacionais a serem celebradas em um cenário marcado pelo imperialismo, tema discutido por Eduardo Morettin.
Dentre os inúmeros caminhos e possibilidades de trocas e encontros, o leitor terá contato com os momentos históricos, os agentes culturais, as instituições e os filmes que construíram, a seu modo, uma história do cinema sob a perspectiva transatlântica.